“O saber não ocupa lugar”
2023-03-29 18:00:00

 

Foi no Corpo de Bombeiros Voluntários de Almoçageme que deu os primeiros passos como bombeiro, com apenas 14 anos de idade. Mais tarde, em 2001, descobriu ainda a vocação para ensinar e tornou-se formador da Escola Nacional de Bombeiros (ENB). Desde então que Vitor Matos se dedica não apenas a ensinar os formandos que frequentam os cursos da área do pré-hospitalar, mas também a uma aprendizagem constante.  E porque nunca é tarde para aprender, encontra-se atualmente a frequentar uma licenciatura na área da Educação. 

 

O que o levou a ser bombeiro?
Cresci numa pequena aldeia do concelho de Sintra, de nome Almoçageme, onde além da proximidade às praias da Adraga, Grande e Maçãs, existiam e ainda existem duas grandes instituições; a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Almoçageme e a Sociedade Recreativa e Musical de Almoçageme.
Como nunca me inclinei para a área da música, e sempre frequentei mais os bombeiros, foi emergindo aquele fascínio, dando-se aquele clique, com cerca de 13 anos, aquando da eclosão de um incêndio florestal na Serra de Sintra, em que compareceram bombeiros de vários locais do distrito de Lisboa, onde eu e outros colegas andámos pelo quartel dos bombeiros e nas proximidades ao incêndio a ajudar no que podíamos. Todo aquele frenesim de bombeiros e de veículos fascinou-me e despertou a minha curiosidade.
Daí, quando perfiz os 14 anos de idade, em conjunto com o meu grupo de amigos resolvemos inscrever-nos nos bombeiros. 
Não foi um processo fácil, porque o comandante à altura, o comendador José Alberto Caetano, um Homem de poucas palavras, mas de um respeito sem igual, falecido recentemente, e, aproveito esta oportunidade para aqui prestar a minha sentida homenagem a um visionário e um impulsionador dos bombeiros portugueses, com o qual muito aprendi. 
Todo o processo de entrada nos bombeiros foi demorado, sendo necessário lá ir algumas vezes, antes da definitiva inscrição. Inicialmente foi-nos dado o regulamento para lermos atentamente, e só um mês depois, e por nossa insistência, o comandante José Caetano percebeu que realmente nós queríamos ser bombeiros, decorria o ano de 1982.
Por algum tempo fui funcionário da Associação e, no ano de 1987, tive a possibilidade de frequentar um curso no INEM, denominado à época de TAEM - Tripulante Ambulância Emergência Médica, hoje vulgo TAS -Tripulante Ambulância de Socorro, que me daria a competência para tripular as ambulâncias de emergência. 
Desde essa altura fiz o percurso completo na carreira de bombeiro, desde cadete até ao posto de chefe, tendo ainda durante um período de três anos desempenhado o cargo de 2º Comandante.

 

Quando descobriu a vocação para ensinar?
Penso que muito cedo. Como na altura estudava, e como passava muito tempo nos bombeiros o comandante à época incumbia-me de transcrever para acetatos (trabalho feito manualmente, dado que na altura não havia a proliferação das novas tecnologias como hoje) das matérias relativas de bombeiros, para o comandante ministrar na instrução do corpo de bombeiros. Foi muito interessante, porque muita dessa matéria era oriunda dos EUA, onde o comandante tinha estado num curso com outros comandantes de Corpos de Bombeiros portugueses. 
Aquele trabalho de transcrição também fez com que eu fosse estudando as matérias, e com o tempo fui pensando que também um dia poderia vir a fazer o mesmo, ensinar outros bombeiros.
Como o saber não ocupa lugar, tentei sempre evoluir e acrescentar conhecimento, para também, além de melhorar a minha prestação enquanto operacional, pudesse transmitir a outros para que o conhecimento fosse passando, pois considero que só assim se melhora a nossa prestação enquanto operacionais. E nesta área do socorro torna-se extremamente importante, porque lidamos com o fator salvar vidas. 
Esta vocação para o ensino foi-se consolidando ao longo do tempo, porque em 1989, quando o INEM decidiu lançar um novo projeto, incluindo os TAEM´s dos Corpos de Bombeiros, formados pelo INEM na área de influência de CODU de Lisboa, ou seja, o objetivo era os TAEM´s fazerem parte das equipas médicas do INEM, quer em ambulâncias medicalizadas, quer em VMER´S, na dependência direta do CODU Lisboa.
Objetivamente, seria o incorporar a nossa experiência de trabalho de rua, nomeadamente em trauma, com as dos médicos no que era a da medicina em emergência nas doenças. Logo no início fomos sujeitos a mais um curso intensivo, passando esta formação a ser uma constante e frequente.
Não tenho qualquer dúvida que os anos passados na conjugação destas equipas multidisciplinares me ajudou bastante a evoluir enquanto indivíduo e enquanto profissional.
No ano de 1995, o INEM decidiu investir num novo projeto, a formação de formadores. Foi aí que num curso que rondou as 500 horas de formação, ministradas pelos médicos do INEM, em todas as áreas da emergência médica pré-hospitalar. A formação culminava com estágio hospitalar, que sem dúvida reforçou o meu know-how nesta área. 
Desde essa altura que nunca mais abandonei a área da formação, quer para profissionais de saúde, nas várias vertentes da emergência médica pré-hospitalar, quer nos últimos anos para bombeiros nos cursos TAS. 
Não tenho dúvida nenhuma que desde 2001, ano em que vim em definitivo para formador da ENB, contribuí para uma melhoria significativa daquilo que é uma das missões mais importantes dos Corpos de Bombeiros, dar o conhecimento técnico e científico, que me é permitido, aos tripulantes de ambulância de socorro, para que lá fora façam a diferença na mortalidade e morbilidade dos doentes que surgem em situações reais de emergência médica.

 

Certamente que existem episódios marcantes que nunca se esquecem na vida de formador? Quer recordar algum? 
Tenho alguns episódios sem dúvida, mas acho que este foi um daqueles que nos marca para a vida, quer pela sua complexidade quer pela exigência no momento.
Para quem desconheça, a formação na área da emergência médica pré-hospitalar, esta tem sido feita de ciclos, de avanços e de retrocessos. No entanto, numa dessas fases que passava pela componente formativa em contexto de trabalho, na minha opinião, sem dúvida que muito mais produtiva e acreditada. No final de um curso TAS, estava contemplada a componente de estágio em ambulância, muito diferente do que é hoje, porque o formando estagiava. Mas sempre acompanhado por um formador, onde este podia aferir as capacidades adquiridas pelo formando ao longo do seu processo formativo, e em caso de necessidade intervir, ou seja, o formando acabava sempre por ter ali um apoio, que sempre que se justificasse interviria, e no final era sempre feito um debriefing dos pontos positivos e as situações onde deveria ser melhorada a sua atuação. 
Num desses cursos, no final da década de 90, ainda eu era formador do INEM, estávamos na fase do estágio de um dos cursos, num corpo de bombeiros numa cidade Algarvia.  Fomos acionados para um acidente de moto da EN125. Chegados ao local, a vitima mais grave, um jovem de 25 anos, que apesar das lesões visíveis, estava consciente, mas, algo despertou a minha atenção quando a vitima em questão dizia constantemente para o levarmos dali que ia “morrer…” Este foi um sinal de alerta, que reforcei à equipa, e a qual percebeu rapidamente. Tanto que ao fim de 10 minutos no local já estávamos a caminho do hospital de Faro, que distava ainda cerca de 40 km, e à época sem meios de Suporte Avançado de Vida, só podíamos contar connosco. 
Todos os procedimentos adequados e indispensáveis para a remoção e imobilização da vítima foram tidos em conta para o mais rápido possível iniciarmos o transporte.
Sim, fizemo-lo, mas as potenciais lesões internas, que não se vêm, mas que invisivelmente se vão instalando, aconteceram. Não obstante a minha supervisão e auxílio nesta situação especifica, onde acabei por assumir as rédeas da situação, e em conjunto com aqueles formandos recém-formados, de tudo fizemos para salvar aquela vida. Mas infelizmente, apesar de todos os esforços, e do excelente trabalho de equipa e desempenho de todos, o desfecho não foi o por todos desejado. 
No debriefing final desta situação, apesar da frustração, foi muito reconfortante perceber que os formandos se portaram ao mais alto nível para aquilo que foram formados, mostrando um enorme conhecimento de tudo o que foi adquirido na formação. E neste campo a missão à qual me dedico foi cumprida na íntegra.

 

E como bombeiro? 
Como bombeiro, tenho várias. No entanto, não vou especificar nenhuma em particular, mas em muitas ocasiões, em especial na área que me é mais querida e aquela que dediquei uma vida, a emergência médica pré-hospitalar, existiram alguns episódios inesquecíveis.
Tudo o que mais me marcou enquanto bombeiro ao longo da vida, é saber que todas aquelas vidas que me passaram pelas mãos, eu sempre apliquei o meu conhecimento, o meu saber e sempre dei o melhor de mim em prol da vida desses doentes. Mesmo que nem todas elas tenham tido o desfecho desejado. O ouvir um obrigado e o receber um abraço sentido, é impagável, é o sentido do dever cumprido. Perante estas situações não há como não ter deixado rolar por vezes uma lágrima, porque apesar de ser bombeiro e de estar preparado psicologicamente para um sem número de adversidades, por vezes as emoções falam mais alto, e como ser humano que sou não é possível ficar indiferente.

 

Tem algum passatempo com que ocupa os tempos livres?
Durante muitos anos, dediquei grande parte da minha vida e do meu tempo a ser bombeiro voluntário. Hoje, já no quadro de honra, dedico-me a passar tempo de qualidade com os meus filhos, porque este é um tempo que se deve aproveitar sempre que possível, porque o tempo perdido não volta.
Como já mencionei, algures lá atrás, o saber não ocupa lugar. E atualmente, estou a frequentar uma licenciatura na área da Educação, em que a leitura e o estudo a que estou obrigado a fazer, me tem proporcionado uma visão mais ampla, no fortalecimento do conhecimento, no saber saber, no saber fazer e no saber ser.
Assim dedico-me, sempre que posso, à leitura dos temas que me agradam, como os relacionados com a II Guerra Mundial, nomeadamente tudo o que esteja relacionado com os campos de concentração, como por exemplo, “A história dos campos de concentração nazis” de Nikolaus Wachsmann. O que incluiu uma viagem à Polónia para visitar os campos de concentração, é forte o sentimento, só quem lá vai, ouve a explicação, entende e sente as reais atrocidades feitas ao ser humano. Ou ainda a leitura na área da emergência médica, os manuais técnicos americanos da Nancy Caroline “Emergency Care on the streets”.

 

Quais os principais desafios que se colocam, atualmente na área do pré-hospitalar?
Os desafios que se colocam atualmente, são os mesmos de há anos, ou seja, que a evolução diferenciada nas equipas das ambulâncias já deveria ter acontecido. Estamos anos atrasados e cada ano o atraso acentua-se.
O principal desafio passará sempre por pensar na vítima, e não nas cores deste ou daquele interveniente, ou seja: quando um meio pré-hospitalar, nomeadamente, uma ambulância é acionada, isto quer dizer que algo aconteceu e alguém precisa de ajuda na área da emergência médica. 
Ora vejamos, o maior número de intervenções na área são executas por ambulâncias de emergência (ambulâncias de socorro é algo que nos normativos europeus não existe, só mesmo em Portugal). Estas equipas, sendo elas o primeiro contato com a vítima, deveriam estar dotadas de conhecimento técnico complementado com o conhecimento cientifico, em Suporte Básico e Avançado de Vida. 
O tempo é precioso quando se está em sofrimento, independentemente da etiologia clínica ou traumática. Obviamente que tudo isto terá que passar por uma diferenciação mais alargada nestas equipas. Sim, refiro-me a cursos de nível técnico e superior, pois, só assim se chega lá, nunca com as 210 horas, em que a única competência é administrar oxigénio e solicitar apoio diferenciado, caso exista essa condição.
Uma sociedade dita evoluída, tem que obrigatoriamente evoluir neste campo também. Não podemos continuar reféns de uma miscelânea de entidades que constantemente empurram estas questões de um lado para o outro. O importante será deixarem-se de demagogias inúteis, que não salvam vidas.
Como exemplo, se num determinado ponto do nosso país, distante dos grandes centros urbanos, onde geograficamente, são os Corpos de Bombeiros ou delegações da Cruz Vermelha que possuem este tipo de meios de socorro, onde não existem meios SAV, será lícito que se esteja à espera mais que uma hora para que chegue um meio SAV para, por exemplo, fazer um ECG ou administrar um fármaco para diminuir a dor? Este é um pequeno exemplo dos tantos que poderia elencar aqui, e dos quais são do conhecimento público.
Assim, o maior desafio não é querermos ter médicos em todas as ambulâncias, porque como sabem, já existe escassez onde são precisos, quanto mais em cada ambulância. Mas sim, apostar na formação técnica de nível superior na área. Não vale a pena querermos mais e melhor se isto nunca vier a acontecer. O modelo atual está esgotadíssimo e não responde aquilo que se pretende, como seja, o melhor, o mais rápido, e precocemente o início do tratamento das vítimas. Só assim se conseguirá na realidade diminuir o sofrimento, a morbilidade e a mortalidade, e a sua posterior recuperação. Mas isto só acontecerá quando se pensar efetivamente na vítima e no que motivou o acionamento dos meios.

 

Como vê o futuro dos bombeiros em Portugal? 
Não sou pessimista. Aliás, sou é precisamente o oposto, por isso entendo que com a camada jovem que existe hoje nos bombeiros, inclusive já muitos deles com formação académica, com outra visão do sistema que seja possível alterar alguns conceitos enraizados, que em nada têm deixado evoluir esta área.
Os bombeiros são uma grande força, que emanaram da sociedade civil, por necessidade, e que devem ser mantidos, mas como tudo carecem de reorganização séria, pensada para o futuro, obviamente, com os ajustes adequados com a evolução técnica e científica. Que nunca esqueçam as suas raízes e que existem para servirem a comunidade.
Para isso, é necessário, que exista uma estrutura hierarquicamente definida, que estabeleça as regras e normativos de atuação para todos, sem exceção, e que estas sejam aplicadas e quando não cumpridas sancionadas. Só assim vejo um futuro para os bombeiros em Portugal.

 

 

 

Conselhos e recomendações - Emergência pré-hospitalar

 

                    Salvar mas em segurança

 

O formador da ENB da área da emergência pré-hospitalar, Vitor Matos, deixa dois conselhos importantes que nunca devem ser esquecidos no decurso de uma situação de emergência pré-hospitalar. 

O primeiro conselho, é que cada vítima é única. Tem especificidades próprias, que advêm da etiologia clínica ou traumática do momento, por isso nunca facilite, avalie-a na totalidade, não parta de pressupostos. Se tem dúvidas ou não sabe volte a perguntar, faça o que lhe compete, mantenha a sua ética profissional….

O segundo considera ser o melhor conselho que pode dar no desempenho do bombeiro nesta área. E é o seguinte: nunca quebre regras de segurança. Quando o faz, o erro acontece, e nesta área, paga-se caro, é uma vida humana que tem nas mãos, é impagável.

 

“O saber não ocupa lugar”
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